quando eu era mais nova, a sensualidade “excessiva” da brigitte bardot me incomodava. queria dialogar outras realidades sobre mulheres; queria o humor e a confiança da katharine hepburn, a guitarra e a provocação da pj harvey. agora mais velha tento buscar entender quem é a mulher que, como dizem os tablóides, “descartava” homens quando queria? que tentou suicídio várias vezes? que abandonou um filho e um casamento para ser livre e viver em uma mansão na praia cercada por animais?

ler sobre ela é difícil, tudo na internet é raso. ler blogs a homenageando com colagens de suas saias vichy é de bocejar. frases dos beatles a venerando como a “mulher perfeita”, banal. comentários infelizes que a própria musa faz atualmente, triste. nada disso parecia resumir algo que eu esperava que resumisse.
sua carreira no cinema é extensa e com obras impecáveis como e deus criou a mulher e o desprezo. seu talento musical nem sempre é lembrado e olha que je t’aime… moi non plus é tema da revolução sexual. dona de uma presença que parece grande demais, em seu potencial máximo, ela é uma ameaça aos valores moralistas de sua época e talvez represente esta ameaça até hoje. contudo, para a grande massa, brigitte bardot é apenas um símbolo sexual.
felizmente, antes tarde do que nunca, descubro a existência da dissertação brigitte bardot & the lolita syndrome (1959) de simone de beauvoir, que me encantou muito. ler a feminista mais famosa defender a importância de BB para a libertação sexual da mulher, o que sua imagem e comportamento desafiam, é um sonho.
há críticas dizendo que beauvoir vangloria demais traços infantis da atriz, mas eu discordo (e muito!); muitas conclusões do texto não são opiniões pessoais da escritora. lembrando que beauvoir antes de tudo era uma existencialista e era sua missão saber diferir a realidade entre homens e mulheres de hipocrisias engolidas facilmente pelo patriarcado.
gosto que nesta biografia não autorizada escrita por marie-dominique leviévre, a admiração grande por bardot é justificada com paixão e nada mais; “e porque ela tem grandes qualidades, tem grandes defeitos”.
aqui a maria thereza traduz meus trechos favoritos do livro.
“…visto de costas, seu corpo esguio e musculoso de dançarina é quase andrógino. a feminilidade triunfa em seus encantadores seios, as longas e voluptuosas tranças de ‘mélisande’ lhe caem sobre os ombros, mas seu penteado é de pirralha desleixada. seus lábios se contraem em um bico infantil. ao mesmo tempo, dão vontade de beijar. ela anda descalça, torce o nariz para roupas elegantes, joias, corpetes, perfumes, maquiagem, para qualquer artifício. e ainda assim seu caminhar é lascivo e um santo venderia a alma ao diabo só para vê-la dançar. muitos diziam que seu rosto só tinha uma expressão. é verdade que o mundo externo dificilmente se reflete nele, e ele não revela grandes perturbações internas. mas aquele ar de indiferença se torna ela própria. BB não foi marcada pela experiência. por mais que seja vivida – como em amar é minha profissão – os ensinamentos que a vida lhe deu são confusos demais para tirar deles qualquer lição. ela não tem memória, não tem passado e, graças a essa ignorância, mantém a inocência perfeita que se atribui a uma infância utópica.“
“BB é uma criança perdida e patética que precisa de um guia e protetor. esse clichê tem seu valor. bajula a vaidade masculina; reassegura mulheres maduras e quase maduras. pode ser visto como obsoleto; mas nunca acusado de ousado. mas os espectadores não acreditam nessa vitória do homem e da ordem social tão prudentemente sugerida pelo cenário – e é precisamente por isso que o filme de vadim e o de um outro diretor francês, autantlara (respectivamente e deus criou a mulher & amar é minha profissão), não caem na banalidade. podemos assumir que a ‘malandrinha’ vai sossegar, mas juliette (em e deus criou a mulher) certamente nunca se tornará uma esposa e mãe modelo. ignorância e inexperiência têm solução, mas BB não é apenas simples, ela é perigosamente sincera. a perversidade de uma ‘bonequinha’ pode ser resolvida por um psiquiatra; existem meios de acalmar as mágoas de uma garota rebelde e conquistá-la para o lado da virtude. em a condessa descalça, ava gardner, apesar de sua libertinagem, não ataca os valores da sociedade – ela condena os próprios instintos admitindo que gosta de ‘andar na lama’. BB não é perversa nem rebelde nem imoral, e é por isso que a moralidade não funciona com ela. bem e mal são convenções em que ela sequer cogitaria se encaixar.“
“ela não dá a mínima para a opinião dos outros. BB não tenta escandalizar. não exige nada, não tem noção de seus direitos e deveres. segue suas vontades. come quando tem fome e faz amor com a mesma simplicidade e falta de cerimônia. desejo e prazer são mais convincentes para ela do que preceitos e convenções. ela não critica o outro. faz o que quer, e é isso que incomoda. não faz perguntas, mas suas respostas têm uma franqueza contagiosa. lapsos da moral podem ser corrigidos, mas como pode BB ser curada de tal virtude – genuinidade? é sua matéria-prima, nem ataques, nem argumentos refinados, nem o amor podem tirar isso dela. ela rejeita não apenas hipocrisia e repreensões, mas também a prudência e as ações calculistas e premeditadas de qualquer tipo. para ela, o futuro ainda é uma invenção dos adultos na qual ela não confia. ‘vivo como se fosse morrer a qualquer momento’, diz juliette. e brigitte nos confidencia: ‘sempre que me apaixono, penso que é para sempre’.“
“quando marlene (dietrich) exibiu as coxas cobertas pela meia-calça de seda enquanto cantava com a voz rouca e olhava em volta com um olhar tórrido, estava presidindo uma cerimônia, invocando um feitiço. BB não invoca feitiços, é espontânea. sua carne não tem a abundância que, em outras, simboliza passividade. suas roupas não são fetiches, e quando se despe não revela um mistério. mostra o corpo, nem mais nem menos, corpo esse que raramente fica imóvel. ela anda, ela dança, ela perambula. seu erotismo não é mágico, mas agressivo. no jogo do amor, ela é tanto caçadora quanto presa. o macho é objeto para ela, tanto quanto ela para ele. e é precisamente isso que fere o orgulho masculino. em países latinos, onde os homens se apegam ao mito da ‘mulher objeto’, a naturalidade de BB lhes parece mais perversa do que qualquer possível sofisticação. desdenhar joias e cosméticos e salto alto e corpete é recusar se transformar em um ídolo remoto. é reafirmar que o homem é seu semelhante, reconhecer que entre a mulher e ele existe desejo e prazer mútuos.“




texto por natalia mello
tradução por maria thereza moss